
Espelho espelho meu, existe nesse reino alguém mais elegante do que eu ?
Cá entre nós, quem nunca fez essa pergunta diante do espelho quando era criança ? E claro, antes de fazer essa pergunta, era de praxe realizar toda uma preparação, um embelezamento, como que um empoderamento, um encantamento, com as maquiagens das nossas mães e avós.
Tenho uma filha de 10 anos e, outro dia, observando sua paixão por maquiagens (as minhas no caso), me indaguei de onde vem esse fascínio que temos por esses apetrechos mágicos que nos transformam por dentro e por fora, deixando-nos mais atraentes, ao mesmo tempo que melhoram a nossa autoestima e nos protegem.
Um pequeno retoque na sobrancelha e um singelo efeito bronzeador nas maçãs do rosto, como eu faço desde que me entendo por gente todos os santos dias, ou uma make completa para o dia a dia ou para uma ocasião especial, blushes, batons, delineadores, rímel e outros recursos cosméticos, em suas versões ancestrais ou modernas, fazem parte das nossas rotinas desde tempos imemoriais.
Mas por que, quando e onde surgiu esse hábito tão caro a nós seres humanos?
Te convido neste artigo a sondar comigo a fabulosa História da maquiagem, da pré-história até os dias atuais.
A maquiagem na pré-história : explorando o poder da terra e dos minerais
Foi no continente africano, mais precisamente nas grotas de Blombos na África do Sul, que arqueólogos encontraram em 2008 um conjunto de ferramentas e fragmentos de pigmentos que datam de 100.000 anos.
O primeiro objeto é composto de uma grande concha de abalone recoberta com um pigmento vermelho de 5mm de espessura, com resquícios de pigmentos e lascas de quartzo, provavelmente usado para desmanchar os pigmentos. Junto a esse primeiro objeto, um cascalho preservava o conteúdo da concha. O segundo objeto é constituído de uma concha abalone coberta com uma camada de pigmento, contendo um pedacinho de quartzo esculpido e revestido de pigmentos vermelho e amarelo, assim como fragmentos de minério vermelho com vestígios de abrasão e de desgaste.
Ora vejam, para além do fogo doméstico, de suas ferramentas eficazes, suas armas de pedra e de madeira e o pensamento simbólico, nossos ancestrais pré-históricos, os homens de neandertal, já possuíam uma paleta multicolor para chamar de sua.
Um dos pigmentos encontrados nessas conchas, a natrojarosita amarela, é o mesmo que será utilizado posteriormente pelos antigos egípcios e por algumas civilizações pré-colombianas.
Prosseguimos na nossa linha do tempo. Próxima parada, a civilização onde Cleópatra brilhou.
A maquiagem na antiguidade
maquiagem no Antigo Egito, sinônimo de espiritualidade, prosperidade e saúde
A mulher egípcia aplicava blush e pintava seus lábios de vermelho, como comprovam os vestígios desses pigmentos em suas paletas, que eram obtidos a partir de ocre.
Os olhos eram realçados com sombra verde, azul e preto e a pele pálida se obtinha graças a uma pomada a base de alabastro e de leite de mula ou ainda com emplastros a base de cérebro de tartaruga, sebo e fezes de ibis, que eram dissolvidos no leite de mula. Nada glamoroso, convenhamos…
A henna dava cor aos cabelos, às mãos e unhas enquanto que a malaquita e a galena adornavam as pálpebras. Cabe lembrar que a obsessão por uma tez branquíssima, que era obtida graças ao carbonato de chumbo, conhecido posteriormente como cerusa veneziana (substância altamente tóxica, diga-se de passagem,) já denotava sinais ancestrais da relação entre a aparência física (branquitude) e o sucesso.
No antigo Egito, cosmetologia, medicina e espiritualidade andavam de mãos dadas no culto omnipresente às divindades. Homens, mulheres e crianças desenhavam e acreditavam se proteger contra doenças oculares e maus espíritos com os icônicos kohls pretos, verdes ou azuis; entre as oferendas aos mortos, um verdadeiro arsenal de beleza, com direito a referências de marca, cor, composição e sazonalidade, eram depositados aos pés das tumbas. O glamour acompanhava os Egípcios no além!
Eles acreditavam que a maquiagem lhes conferia poderes sobrenaturais, além de protegê-los contra os elementos naturais como o sol escaldante e os ventos do deserto.
Roma e Grécia : uma visão dicotômica da feminilidade
Enquanto no Egito antigo o cuidado pessoal fazia parte do ritual tanto de homens quanto de mulheres, na Grécia e na Roma Imperial, a vaidade estava reservada somente às mulheres.
Na Grécia, a maquiagem era considerada mais uma técnica do que uma arte; para eles o esplendor só podia ser alcançado com o uso de artefatos.
Os gregos distinguiam a arte de se cuidar da arte de se maquiar. Corpo e rosto eram embranquecidos com a famosa cerusa veneziana, já mencionada anteriormente, ou ainda com ceras, mel, ovos ou cevada.
O do it yourself já era praticado pelas mulheres gregas, que revestiam seus lábios com mel e aplicavam cremes animais à base de excrementos de touro e de ovelha misturados com banha.
Os romanos pintavam os lábios de carmim e cobriam o rosto com pó de giz. Para obter o famoso louro veneziano das deslumbrantes louras gregas, as mulheres romanas descoloriam suas madeixas estendendo-as longas horas em seus solariums; ao contrário, o processo de escurecimento dos cabelos se obtinha com a cascas das nozes moída.
Para realçar as sobrancelhas, gregas e romanas usavam carvão, enquanto valorizavam os cílios e as pálpebras com galena, ocre e malaquita. As maçãs do rosto ganhavam contornos provocativos e volume graças ao pós cor-de-rosa choque que eram obtidos a partir de minerais e frutas batidas.
Duas civilizações androcêntricas que associavam amiúde os artifícios cosméticos à arte de sedução das cortesãs e a ausência deles à devoção de suas esposas.
Ora, não podemos esquecer que o mito de criação grega da primeira mulher, Pandora, nos traz a imagem de uma manequim concebida pelos Deuses, repleta de manhas e artifícios e enfeitada de maneira irresistivelmente sedutora, para a grande infelicidade dos homens.
Do puritanismo medieval à maquiagem como expressão da arte e da moda renascentistas

Quando evocamos a Idade Média, a falta de higiene é sempre um tema recorrente, ao contrário dos famosos banhos ubíquos da antiguidade. Durante esse período, o máximo que se fazia era lavar o rosto, branqueá-lo e perfumar-se com notas de canela, jasmim, rosa ou lavanda.
Foi preciso esperar a invenção da destilação bizantina, as cruzadas e o caminho das Índias para que Ocidente medieval tivesse acesso aos produtos cosméticos.
No século XVII, os apotecários detinham o monopólio das águas de cheiro e blushes perfumados. A maquiagem era, por assim dizer, um marcador social e alguns pigmentos e o alabastro eram privilégio das damas da corte. As imperfeições da pele podiam ser disfarçadas com o uso da tóxica cerusa veneziana ou ainda com uma mistura de farinha e clara de ovo.
Diane de Poitiers, condessa favorita do rei Henrique II da França, no século XV, fixaria por cem anos os cânones de beleza.
Segundo ela, toda mulher que desejava brilhar, deveria imperativamente ter :
três coisas brancas : a pele, os dentes e as mãos;
três coisas negras : os olhos, as sobrancelhas e as pálpebras;
três coisas vermelhas : as maçãs do rosto, os lábios e as unhas;
Durante o Renascimento, a maquiagem passa a ser vista também como uma forma de expressão artística, um caldeirão experimental, onde surgem novos estilos e novas técnicas possibilitando a criação de looks originais e sofisticados.
A maquiagem na modernidade e contemporaneidade : segurança, liberdade de expressão e diversidade
Durante a era vitoriana, a discrição em matéria de maquiagem se impôs, dando ênfase a uma aparência de pele impecável e natural, com uso sutil de blush e batons de cores suaves. Todo excesso de maquiagem era associado a mulheres de classes inferiores.
No entanto, a revolução industrial vem abalar todos os setores da economia ocidental. A ciência remodela nossos hábitos cosméticos, a cerusa veneziana é banida, devido a sua toxicidade e, doravante, todos podem ter acesso às inovações cosméticas.
No século passado, as tendências passaram a ser ditadas pelo cinema. Maquiagens de atrizes icônicas e feministas como Audrey Hepburn e Brigitte Bardot se tornam míticas, imortais. Quem nunca teve um olho de gato a la Brigitte Bardot, que jogue fora seu delineador preferido !
O século atual assiste a um boom desenfreado no que se refere às técnicas de maquiagem (no makeup, fox eyes, etc) e matérias-primas (nanotecnobiologia, cosméticos biomiméticos, ativos like effects, etc). Sem falar da exigência cada vez maior dos consumidores no que diz respeito ao desenvolvimento de fórmulas isentas de produtos tóxicos para a pele e também para o meio ambiente.
A maquiagem do século XXI se quer uma forma de expressar não só nossos valores mas também nossas particularidades. Surgem técnicas como o visagismo, uma abordagem de beleza - que envolve técnicas de maquiagem, cortes de cabelo, penteados e moda - cujo objetivo é realçar nossas características naturais e potencialidades, harmonizando a aparência como um todo.
Surgem também muitos questionamentos no que se refere a utilidade do makeup e as regras impostas pela sociedade são constantemente desconstruídas.
A maquiagem de hoje é uma forma de empoderamento pessoal que nos permite afirmar nossa individualidade através de looks únicos. Não são poucas as marcas de maquiagem que se esforçam cada vez mais em promover a inclusão e a representatividade, abraçando toda a diversidade de tons de pele, etnias e gêneros.

Como vimos, a maquiagem nos acompanha desde os primórdios. O relato cronológico aqui exposto responde a duas perguntas : quando e onde surgiu a maquiagem. Mas o leitor pode julgar meu relato incompleto sem a resposta à pergunta : por que nos maquiamos ?
Para tentar contentar o leitor, me parece interessante traçar um paralelo da história aqui contada, um tanto hegemônica, confesso, com as pinturas tribais, já que tanto uma como a outra são expressões culturais que transcendem o tempo e as fronteiras.
Assim como nossos ancestrais faziam uso dos pigmentos naturais para adornar seus corpos e rostos, diferentes culturas espalhadas pelo globo vêem na arte de se maquiar uma forma de expressar sua identidade, suas crenças e sua criatividade.
Por ser a maquiagem um artificio capaz de traduzir nossa identidade, proporcionar conexão espiritual, nos proteger, nos camuflar e dar vazão à nossa expressão artística, ela é instrumento que reflete nosso mundo interior.
Situando-se na encruzilhada das artes, das religiões e da ciência, a arte de se maquiar é uma tradição que retrata a imemorial aventura da humanidade, qual seja, dar vida a nossas mais profundas crenças para nos posicionarmos no mundo.
Artigo escrito por Gabriela Nanni, redatora publicitária, professora de yoga e farmacêutica perfumista.
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